6 de janeiro de 2012

Ana Luisa Amaral: uma poética do avesso.


 Ana Luísa é autora de vários livros de poesia, publicados a partir de 1990. O seu livro de estréia – Nossa senhora de quê – a estabelece um diálogo com o livro da poetisa Maria Teresa Horta, Nossa senhora de mim (1974), em um certo sentido, Ana Luísa Amaral faz um reinvestimento temático do livro de Maria Teresa Horta. Esta tenta recuperar a identidade da mulher, devolve-lhe a voz que o homem lhe havia usurpado nas “Cantigas de Amigo” medievais, faz a mulher assumir-se em sua inteireza, resgatando-lhe a sexualidade reprimida, fazendo-a parceira ativa na relação amorosa com o homem. Ela recria a convenção, de um ponto de vista decididamente feminista.
Ana Luísa Amaral parece questionar o posicionamento de Maria Teresa Horta. Com a eliminação do pronome possessivo logo no título do livro (minha senhora de quê) e no primeiro verso do poema que leva o mesmo título (dona de que; dona de mim nem sou). A poetisa “reinventa a reinvenção de Maria Teresa Horta no “nada” de “ser” que todos somos, afinal, homens e mulheres”:* 

MINHA SENHORA DE QUÊ 
dona de quê 
se na paisagem onde se projectam
pequenas asas... deslumbrantes folhas 
nem eu me projectei 

se os ventos apressados 
me nascem sempre urgentes: 
trabalhos de permeio refeições
doendo a consciência inusitada 

dona de mim nem sou
se sintaxes trocadas
o mais das vezes nem minha intenção 

se sentidos diversos ocultados
nem do culto nascem
(poética do Hades quem me dera!) 

Dona de nada senhora nem
de mim: imitações de medo
os meus infernos. 

Esse gosto pelo reinvestimento temático, pela prática de uma “poética do avesso” é uma constante desde o primeiro livro da poetisa. Além do exemplo evidente desse trabalho pelo avesso calcado no livro de Maria Teresa Horta, há muitos outros, como um poema do livro Epopéias (1994) curiosamente intitulada Orfeu do avesso, no qual Eurídice, contrariando a tradição mitológica, recusa-se a morrer:

De pé sobre o abismo
E não morri;
Canto gregoriano
muito limpo
não me chegou;
o fim 

Catedral
sobre o risco,
sobre um azul tão grande
que afundar-me podia 

Ao fundo do mais fundo
mergulhei
e não morri;
amei 

Não é apenas nessas temáticas que se expande a poesia de Ana Luísa Amaral. Haveria muito mais a apresentar aqui, se a postagem não ficasse longa demais.  Mais poesias ficarão, portanto, para uma outra vez...


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